ENCONTRO “A PROTEÇÃO DOS MENORES NA IGREJA”
[VATICANO, 21-24 DE FEVEREIRO DE 2019]
Amados irmãos e irmãs!
Ao dar graças ao Senhor que nos acompanhou nestes dias, quero agradecer também a todos vós pelo espírito eclesial e o empenhamento concreto que manifestastes com tanta generosidade.
O nosso trabalho levou-nos a reconhecer, uma vez mais, que a gravidade do flagelo dos abusos sexuais contra menores é um fenómeno historicamente difuso, infelizmente, em todas as culturas e sociedades. Mas, apenas em tempos relativamente recentes, se tornou objeto de estudos sistemáticos, graças à mudança de sensibilidade da opinião pública sobre um problema considerado tabu no passado, ou seja, todos sabiam da sua existência, mas ninguém falava nele. Isto traz-me à mente também a prática religiosa cruel, difusa no passado nalgumas culturas, de oferecer seres humanos – frequentemente crianças – como sacrifícios nos ritos pagãos. Todavia, ainda hoje, as estatísticas disponíveis sobre os abusos sexuais contra menores, compiladas por várias organizações e organismos nacionais e internacionais (Oms, Unicef, Interpol, Europol e outros), não apresentam a verdadeira extensão do fenómeno, muitas vezes subestimado, principalmente porque muitos casos de abusos sexuais de menores não são denunciados,[1] sobretudo os numerosíssimos abusos cometidos no interior da família.
De facto, as vítimas raramente desabafam e buscam ajuda.[2] Por trás desta relutância, pode estar a vergonha, a confusão, o medo de retaliação, os sentimentos de culpa, a difidência nas instituições, os condicionalismos culturais e sociais, mas também a falta de informação sobre os serviços e as estruturas que podem ajudar. Infelizmente, a angústia leva à amargura, e mesmo ao suicídio, ou por vezes a vingar-se, fazendo o mesmo. A única coisa certa é que milhões de crianças no mundo são vítimas de exploração e de abusos sexuais.
Seria importante aqui referir os dados gerais – na minha opinião, sempre parciais – a nível global[3] e sucessivamente a nível da Europa, da Ásia, das Américas, da África e da Oceânia, para ter um quadro da gravidade e profundidade deste flagelo nas nossas sociedades.[4] Para evitar discussões desnecessárias, quero antes de mais nada salientar que a menção de alguns países tem por único objetivo citar os dados estatísticos referidos nos citados Relatórios.
A primeira verdade que resulta dos dados disponíveis é esta: quem comete os abusos, ou seja, as violências (físicas, sexuais ou emotivas) são sobretudo os pais, os parentes, os maridos de esposas-meninas, os treinadores e os educadores. Além disso, segundo os dados Unicef de 2017 relativos a 28 países no mundo, em cada 10 meninas-adolescentes que tiveram relações sexuais forçadas, 9 revelam que foram vítimas duma pessoa conhecida ou próxima da família.
De acordo com os dados oficiais do governo americano, nos Estados Unidos mais de 700.000 crianças são, anualmente, vítimas de violência e maus tratos. Segundo o Centro Internacional para Crianças Desaparecidas e Exploradas (Icmec), uma em cada 10 crianças sofre abuso sexuais. Na Europa, 18 milhões de crianças são vítimas de abusos sexuais.[5]
Se tomarmos o exemplo da Itália, o relatório 2016 de «Telefone Azul» salienta que 68,9% dos abusos acontece dentro das paredes domésticas do menor.[6]
Palco de violências não é apenas o ambiente doméstico, mas também o do bairro, da escola, do desporto[7] e, infelizmente, também o ambiente eclesial.
Dos estudos realizados, nos últimos anos, sobre o fenómeno dos abusos sexuais contra menores, resulta também que o desenvolvimento da web e dos mass-media contribuiu para aumentar significativamente os casos de abusos e violências perpetrados on-line. A difusão da pornografia cresce rapidamente no mundo através da internet. O flagelo da pornografia assumiu dimensões assustadoras, com efeitos deletérios sobre a psique e as relações entre homem e mulher, e entre estes e os filhos. É um fenómeno em crescimento contínuo. Uma parte considerável da produção pornográfica tem, infelizmente, por objeto os menores, que deste modo ficam gravemente feridos na sua dignidade. Estudos neste campo – é triste – documentam que isto acontece sob formas cada vez mais horríveis e violentas; chega-se ao extremo dos atos de abuso sobre menores comissionados e seguidos ao vivo através da internet.[8]
Lembro aqui o Congresso internacional realizado em Roma sobre o tema da dignidade da criança na era digital; bem como o primeiro Fórum da Aliança Inter-religiosa para Comunidades mais Seguras, que teve lugar, sobre o mesmo tema, no passado mês de novembro, em Abu Dhabi.
Outro flagelo é o turismo sexual: anualmente, segundo os dados 2017 da Organização Mundial de Turismo, três milhões de pessoas no mundo viajam para ter relações sexuais com um menor.[9] Facto significativo é que, na maior parte dos casos, os autores de tais crimes não sabem que estão a cometer um reato.
Estamos, pois, diante dum problema universal e transversal que, infelizmente, existe em quase toda a parte. Devemos ser claros: a universalidade de tal flagelo, ao mesmo tempo que confirma a sua gravidade nas nossas sociedades,[10] não diminui a sua monstruosidade dentro da Igreja.
A desumanidade do fenómeno, a nível mundial, torna-se ainda mais grave e escandalosa na Igreja, porque está em contraste com a sua autoridade moral e a sua credibilidade ética. O consagrado, escolhido por Deus para guiar as almas à salvação, deixa-se subjugar pela sua fragilidade humana ou pela sua doença, tornando-se assim um instrumento de satanás. Nos abusos, vemos a mão do mal que não poupa sequer a inocência das crianças. Não há explicações suficientes para estes abusos contra as crianças. Com humildade e coragem, devemos reconhecer que estamos perante o mistério do mal, que se encarniça contra os mais frágeis, porque são imagem de Jesus. É por isso que atualmente cresceu na Igreja a consciência do dever que tem de procurar não só conter os gravíssimos abusos com medidas disciplinares e processos civis e canónicos, mas também enfrentar decididamente o fenómeno dentro e fora da Igreja. Sente-se chamada a combater este mal que atinge o centro da sua missão: anunciar o Evangelho aos pequeninos e protegê-los dos lobos vorazes.
Quero repetir aqui claramente: ainda que na Igreja se constatasse um único caso de abuso – o que em si já constitui uma monstruosidade –, tratar-se-á dele com a máxima seriedade. Irmãos e irmãs: na ira justificada das pessoas, a Igreja vê o reflexo da ira de Deus, traído e esbofeteado por estes consagrados desonestos. O eco do grito silencioso dos menores, que, em vez de encontrar neles paternidade e guias espirituais, acharam algozes, fará abalar os corações anestesiados pela hipocrisia e o poder. Temos o dever de ouvir atentamente este sufocado grito silencioso.
É difícil, porém, compreender o fenómeno dos abusos sexuais contra os menores sem a consideração do poder, pois aqueles são sempre a consequência do abuso de poder, a exploração duma posição de inferioridade do indefeso abusado que permite a manipulação da sua consciência e da sua fragilidade psicológica e física. O abuso de poder está presente também nas outras formas de abusos de que são vítimas quase oitenta e cinco milhões de crianças, no esquecimento geral: as crianças-soldado, os menores prostituídos, as crianças desnutridas, as crianças raptadas e frequentemente vítimas do monstruoso comércio de órgãos humanos, ou então transformadas em escravos, as crianças vítimas das guerras, as crianças refugiadas, as crianças abortadas, etc.
Perante tanta crueldade, tanto sacrifício idólatra das crianças ao deus poder, dinheiro, orgulho, soberba, não são suficientes meras explicações empíricas; estas não são capazes de fazer compreender a amplitude e a profundidade deste drama. A hermenêutica positivista demonstra, mais uma vez, a sua limitação. Dá-nos uma explicação verdadeira que nos ajudará a tomar as medidas necessárias, mas não é capaz de nos indicar o significado. E hoje precisamos de explicações e significados. As explicações ajudar-nos-ão imenso no setor operativo, mas deixar-nos-ão a meio do caminho.
Qual seria então o «significado» existencial deste fenómeno criminoso? Hoje, tendo em conta a sua amplitude e profundidade humana, só pode ser a manifestação atual do espírito do mal. Sem ter presente esta dimensão, permaneceremos longe da verdade e sem verdadeiras soluções.
Irmãos e irmãs, estamos hoje perante uma manifestação do mal, descarada, agressiva e destruidora. Por detrás e dentro disto está o espírito do mal, que, no seu orgulho e soberba, se sente o dono do mundo[11] e pensa que venceu. Isto gostaria de vo-lo dizer com a autoridade de irmão e pai (pequeno e pecador, sem dúvida, mas que é o pastor da Igreja que preside na caridade): nestes dolorosos casos, vejo a mão do mal que não poupa sequer a inocência dos pequeninos. E isto leva-me a pensar no exemplo de Herodes que, impelido pelo medo de perder o seu poder, ordenou massacrar todas as crianças de Belém.[12] Por trás disto está satanás.
E assim como devemos tomar todas as medidas práticas que o bom senso, as ciências e a sociedade nos oferecem, assim também não devemos perder de vista esta realidade e tomar as medidas espirituais que o próprio Senhor nos ensina: humilhação, acusa de nós mesmos, oração, penitência. É o único modo de vencer o espírito do mal. Foi assim que Jesus o venceu.[13]
Assim, o objetivo da Igreja será ouvir, tutelar, proteger e tratar os menores abusados, explorados e esquecidos, onde quer que estejam. Para alcançar este objetivo, a Igreja deve elevar-se acima de todas as polémicas ideológicas e as políticas jornalísticas que frequentemente instrumentalizam, por vários interesses, os próprios dramas vividos pelos pequeninos.
Por isso, chegou a hora de colaborarmos, juntos, para erradicar tal brutalidade do corpo da nossa humanidade, adotando todas as medidas necessárias já em vigor a nível internacional e a nível eclesial. Chegou a hora de encontrar o justo equilíbrio de todos os valores em jogo e dar diretrizes uniformes para a Igreja, evitando os dois extremos: nem judicialismo, provocado pelo sentimento de culpa face aos erros passados e pela pressão do mundo mediático, nem autodefesa que não enfrenta as causas e as consequências destes graves delitos.
Desejo, neste contexto, citar as «Boas Práticas» formuladas, sob a guia da Organização Mundial da Saúde, por um grupo de dez Agências internacionais[14] que desenvolveu e aprovou um pacote de medidas chamado INSPIRE, isto é, sete estratégias para acabar com a violência contra as crianças.[15]
Valendo-se destas diretrizes, a Igreja, no seu percurso legislativo, graças também ao trabalho feito nos últimos anos pela Comissão Pontifícia para a Tutela dos Menores e à contribuição deste nosso Encontro, concentrar-se-á sobre as seguintes dimensões:
1. A tutela das crianças: o objetivo primário das várias medidas é proteger os pequeninos e impedir que caiam vítimas de qualquer abuso psicológico e físico. Portanto, é necessário mudar a mentalidade combatendo a atitude defensivo-reativa de salvaguardar a Instituição em benefício duma busca sincera e decidida do bem da comunidade, dando prioridade às vítimas de abusos em todos os sentidos. Diante dos nossos olhos, devem estar sempre presentes os rostos inocentes dos pequeninos, recordando as palavras do Mestre: «Se alguém escandalizar um destes pequeninos que creem em Mim, seria preferível que lhe suspendessem do pescoço a mó de um moinho e o lançassem nas profundezas do mar. Ai do mundo, por causa dos escândalos! São inevitáveis, decerto, os escândalos, mas ai do homem por quem vem o escândalo!» (Mt 18, 6-7).
2. Seriedade impecável: gostaria de reiterar, aqui, que a Igreja «não poupará esforços fazendo tudo o que for necessário para entregar à justiça toda a pessoa que tenha cometido tais delitos. A Igreja não procurará jamais dissimular ou subestimar qualquer um destes casos» (Discurso à Cúria Romana, 21/XII/2018). É sua convicção que «os pecados e crimes das pessoas consagradas matizam-se de cores ainda mais foscas de infidelidade, de vergonha e deformam o rosto da Igreja, minando a sua credibilidade. De facto, a própria Igreja, juntamente com os seus filhos fiéis, é vítima destas infidelidades e destes verdadeiros crimes de peculato» (Ibidem).
3. Uma verdadeira purificação: apesar das medidas tomadas e os progressos realizados em matéria de prevenção dos abusos, é necessário impor um renovado e perene empenho na santidade dos pastores, cuja configuração a Cristo Bom Pastor é um direito do povo de Deus. Reitera-se, pois, «a firme vontade de prosseguir, com toda a força, pelo caminho da purificação. A Igreja (…) questionar-se-á como proteger as crianças; como evitar tais calamidades, como tratar e reintegrar as vítimas; como reforçar a formação nos seminários. Procurar-se-á transformar os erros cometidos em oportunidades para erradicar este flagelo não só do corpo da Igreja, mas também do seio da sociedade» (Ibidem). O temor santo de Deus leva a acusar-nos – como pessoa e como instituição – e a reparar as nossas falhas. Acusar-se a si próprio: é um início sapiencial, associado ao temor santo de Deus. Aprender a acusar-se a si próprio, como pessoa, como instituição, como sociedade. Na realidade, não devemos cair na armadilha de acusar os outros, que é um passo rumo ao álibi que nos separa da realidade.
4. A formação: ou seja, as exigências da seleção e formação dos candidatos ao sacerdócio com critérios não só negativos, visando principalmente excluir as personalidades problemáticas, mas também positivos oferecendo um caminho de formação equilibrado para os candidatos idóneos, tendente à santidade e englobando a virtude da castidade. Na encíclica Sacerdotalis caelibatus, São Paulo VI deixou escrito: «Uma vida tão inteira e amavelmente dedicada, no interior e no exterior, como a do sacerdote celibatário, exclui, de facto, candidatos com insuficiente equilíbrio psicofísico e moral. Não se deve pretender que a graça supra o que falta à natureza» (n.º 64).
5. Reforçar e verificar as diretrizes das Conferências Episcopais: ou seja, reafirmar a necessidade da unidade dos Bispos na aplicação de parâmetros que tenham valor de normas e não apenas de diretrizes. Normas, não somente diretrizes. Nenhum abuso deve jamais ser encoberto (como era habitual no passado) e subestimado, pois a cobertura dos abusos favorece a propagação do mal e eleva o nível do escândalo. De modo particular, é preciso desenvolver um novo enquadramento eficaz de prevenção em toda as instituições e ambientes das atividades eclesiais.
6. Acompanhar as pessoas abusadas: o mal que viveram deixa nelas feridas indeléveis que se manifestam também em rancores e tendências à autodestruição. Por isso, a Igreja tem o dever de oferecer-lhes todo o apoio necessário, valendo-se dos especialistas neste campo. Escutar… eu diria «perder tempo» escutando. A escuta cura a pessoa ferida, e cura-nos a nós também do egoísmo, da distância, do «não me diz respeito», da atitude do sacerdote e do levita na parábola do Bom Samaritano.
7. O mundo digital: a proteção dos menores deve ter em conta as novas formas de abuso sexual e de abusos de todo o género que os ameaçam nos ambientes onde vivem e através dos novos instrumentos que utilizam. Os seminaristas, os sacerdotes, os religiosos, as religiosas, os agentes pastorais e todos os fiéis devem estar cientes de que o mundo digital e o uso dos seus instrumentos com frequência incidem mais profundamente do que se pensa. Quero aqui encorajar os países e as autoridades a aplicarem todas as medidas necessárias para limitar os websites que ameaçam a dignidade do homem, da mulher e, em particular, dos menores. Irmãos e irmãs: o reato não goza do direito à liberdade. É absolutamente necessário opor-se com a máxima decisão a tais abomínios, vigiar e lutar para que o desenvolvimento dos pequeninos não seja perturbado nem abalado por um acesso descontrolado à pornografia, que deixará sinais negativos profundos na sua mente e na sua alma. Devemos esforçar-nos por que as jovens e os jovens, particularmente os seminaristas e o clero, não se tornem escravos de dependências baseadas na exploração e no abuso criminoso dos inocentes e suas imagens e no desprezo da dignidade da mulher e da pessoa humana. Destacam-se aqui as novas normas «sobre os delitos mais graves» aprovadas pelo Papa Bento XVI em 2010, onde fora acrescentado como um novo caso de delito «a aquisição, a detenção ou a divulgação», realizada por um membro do clero «de qualquer forma e por qualquer meio, de imagens pornográficas tendo por objeto menores». Falava-se então de «menores de 14 anos»; agora achamos que devemos elevar este limite de idade para ampliar a tutela dos menores e insistir na gravidade destes factos.
8. O turismo sexual: o comportamento, o olhar, o íntimo dos discípulos e servidores de Jesus devem saber reconhecer a imagem de Deus em toda a criatura humana, a começar pelos mais inocentes. Somente bebendo neste respeito radical da dignidade do outro é que poderemos defendê-lo da força invasiva da violência, exploração, abuso e corrupção, e servi-lo de forma credível no seu crescimento integral, humano e espiritual, no encontro com outros e com Deus. Para combater o turismo sexual, é necessária a repressão judicial, mas também apoio e projetos para a reinserção das vítimas desse fenómeno criminoso. As comunidades eclesiais são chamadas a reforçar o cuidado pastoral das pessoas exploradas pelo turismo sexual. Entre estas, as mais vulneráveis e necessitadas de ajuda particular são certamente mulheres, menores e crianças; estas últimos, porém, precisam de proteção e atenção especiais. As autoridades governamentais deem prioridade e ajam urgentemente para combater o tráfico e a exploração económica das crianças. Para isso, é importante coordenar os esforços a todos os níveis da sociedade e colaborar estreitamente também com as organizações internacionais para realizar um quadro jurídico que proteja as crianças da exploração sexual no turismo e permita perseguir legalmente os criminosos.[16]
Permitam-me agora um sentido agradecimento a todos os sacerdotes e aos consagrados que servem o Senhor com total fidelidade e se sentem desonrados e desacreditados pelos vergonhosos comportamentos dalguns dos seus confrades. Todos – Igreja, consagrados, Povo de Deus e até o próprio Deus – carregamos as consequências das suas infidelidades. Agradeço, em nome da Igreja inteira, à grande maioria dos sacerdotes que não só permanecem fiéis ao seu celibato, mas se gastam num ministério que hoje se tornou ainda mais difícil pelos escândalos de poucos (mas sempre demasiados) dos seus irmãos. E obrigado também aos fiéis que conhecem bem os seus bons pastores e continuam a rezar por eles e a apoiá-los.
Por fim, gostaria de assinalar a importância de dever transformar este mal em oportunidade de purificação. Fixemos o olhar na figura de Edith Stein (Santa Teresa Benedita da Cruz), com a certeza de que, «na noite mais escura, surgem os maiores profetas e os santos. Todavia a corrente vivificante da vida mística permanece invisível. Certamente, os eventos decisivos da história do mundo foram essencialmente influenciados por almas sobre as quais nada se diz nos livros de história. E saber quais sejam as almas a quem devemos agradecer os acontecimentos decisivos da nossa vida pessoal, é algo que só conheceremos no dia em que tudo o está oculto for revelado».[17] No seu silêncio quotidiano, o santo Povo fiel de Deus continua de muitas formas e maneiras a tornar visível e a atestar com «obstinada» esperança que o Senhor não abandona, que apoia a dedicação constante e, em muitas situações, atribulada dos seus filhos. O santo e paciente Povo fiel de Deus, sustentado e vivificado pelo Espírito Santo, que é o rosto melhor da Igreja profética que, na sua doação diária, sabe colocar no centro o seu Senhor. Será precisamente este santo Povo de Deus que nos libertará do flagelo do clericalismo, que é o terreno fértil para todos estes abomínios.
O melhor resultado e a resolução mais eficaz que podemos oferecer às vítimas, ao Povo da Santa Mãe Igreja e ao mundo inteiro são o compromisso em prol duma conversão pessoal e coletiva, a humildade de aprender, escutar, assistir e proteger os mais vulneráveis.
Faço um sentido apelo à luta total contra os abusos de menores, tanto no campo sexual como noutros campos, por parte de todas as autoridades e dos indivíduos, porque se trata de crimes abomináveis que devem ser cancelados da face da terra: pedem isto mesmo as muitas vítimas escondidas nas famílias e em vários setores das nossas sociedades.
[1]Cf. María Isabel Martínez Perez, Abusos sexuales en niños y adolescentes, Ed. Criminología y Justicia, 2012: apenas 2% dos casos são denunciados, especialmente quando os abusos acontecem no âmbito familiar. Calcula que sejam de 15 a 20% as vítimas de pedofilia na nossa sociedade. Apenas 50% das crianças revela o abuso sofrido e, destes casos, apenas 15% são efetivamente denunciados. No fim, apenas 5% são processados.
[2]Um caso sobre 3 não fala disso com ninguém (Dados de 2017, recolhidos pela organização sem fins lucrativos Thorn).
[3]Nível global: Em 2017, a Oms estimou num milhar de milhão os menores com idade entre 2 e 17 anos que sofreram violências ou negligências físicas, emotivas ou sexuais. Os abusos sexuais (desde o apalpar até ao estupro), segundo algumas estimativas Unicef de 2014, envolveriam mais de 120 milhões de meninas, entre as quais se regista o maior número de vítimas. Em 2017, a mesma organização Onu referiu que, em 38 países do mundo de baixo e médio rédito per capita, quase 17 milhões de mulheres adultas admitiram ter tido uma relação sexual forçada durante a infância.
Europa: Em 2013, a Oms estimou mais de 18 milhões de abusos. Segundo a Unicef, em 28 países europeus, cerca de 2,5 milhões de mulheres jovens referiram ter sofrido abusos sexuais, com ou sem contacto físico, antes dos 15 anos (dados divulgados em 2017). Além disso, 44 milhões (22,9%) foram vítimas de violência física, enquanto 55 milhões (29,6%) foram vítimas de violência psicológica. Mais ainda: em 2017, o Relatório da Interpol sobre a exploração sexual de menores levou à identificação de 14.289 vítimas em 54 países europeus. No caso da Itália: em 2017, o Cesvi estimou que 6 milhões de crianças foram maltratadas. Além disso, segundo dados elaborados pelo «Telefone Azul», no período de 1 de janeiro a 31 de dezembro de 2017, os casos de abuso sexual e pedofilia atendidos pelo Serviço 114 Emergência Infância foram 98, que equivalem a cerca de 7,5% do total de casos tratados pelo Serviço. 65% dos menores que pediram ajuda eram vítimas do sexo feminino, e mais de 40% tinha menos de 11 anos.
Ásia: Na Índia, na década 2001-2011, o Centro Asiático de Direitos Humanos registou um total de 48.338 casos de estupros de menores, com um aumento de 336%: de facto, de 2.113 casos em 2001, chegou-se a 7.112 casos em 2011.
Américas: Nos Estados Unidos, os dados oficiais do governo mostram que, anualmente, mais de 700.000 crianças são vítimas de violências e maus-tratos. Segundo o Centro Internacional para Crianças Desaparecidas e Exploradas (Icmec), uma em cada dez crianças sofre abusos sexuais.
África: Na África do Sul, os resultados duma pesquisa realizada pelo Centro de Justiça e Prevenção do Crime, da Universidade da Cidade do Cabo, revelaram que, em 2016, um jovem sul-africano em cada três, homem ou mulher, está sob risco de abusos sexuais antes de completar 17 anos. Segundo o estudo, o primeiro do género à escala nacional na África do Sul, 784.967 jovens entre 15 e 17 anos já sofreram abusos sexuais. Neste caso, as vítimas são predominantemente adolescentes do sexo masculino. Nem um terço deles denunciou as violências às autoridades. Noutros países africanos, os abusos sexuais de menores inserem-se no contexto mais amplo das violências relacionadas com os conflitos que ensanguentam o Continente, sendo difíceis de quantificar. O fenómeno está intimamente ligado também à prática de casamentos precoces generalizada em várias nações africanas e não só.
Oceânia: Na Austrália, segundo os dados divulgados em fevereiro de 2018 pelo Instituto Australiano de Saúde e Bem-Estar (Aihw), relativos aos anos 2015-2017, uma em cada 6 mulheres (16% ou seja 1 milhão e meio) referiu ter sofrido abusos físicos e/ou sexuais antes dos 15 anos, e um em cada 9 homens (11%, ou seja 992.000) referiu ter sofrido este abuso quando eram menores. Além disso, em 2015-2016, cerca de 450.000 crianças foram objeto de medidas de proteção da infância e 55.600 menores foram afastados de casa para tratar os abusos sofridos e prevenir outros. Por fim, não se devem esquecer os riscos que correm os menores nativos: sempre segundo a Aihw, em 2015-2016, a probabilidade de as crianças indígenas sofrerem abusos ou abandono era sete vezes superior à dos seus coetâneos não-indígenas (cf.http://www.pbc2019.org/it/protezione-dei-minori/abuso-dei-minori-a-livello-globale).
[4]Os dados apresentados referem-se a países tomados como amostra pela credibilidade das fontes disponíveis. As pesquisas divulgadas pela Unicef sobre 30 países confirmam este facto: só uma pequena percentagem de vítimas afirmou ter pedido ajuda.
[5]Cf. https: //www.repubblica.it/salute/prevenzione/2016/05/12/news/maltrattamenti_sui_minori_tutti_gli_abusi – 139630223.
[6]Especificamente, o presunto responsável pelo agravo sofrido por um menor é, em 73,7% dos casos, um progenitor (a mãe em 44,2% e o pai em 29,5%), um parente em 3,3%, um amigo em 3,2%, um conhecido em 3%, um professor em 2,5%. Os dados evidenciam como um estranho adulto seja o responsável numa pequena percentagem dos casos, ou seja, 2,2% (cf. Ibidem).
[7]Uma pesquisa inglesa de 2011, realizada pela Sociedade Nacional para a Prevenção da Crueldade às Crianças (Nspcc), verificou que 29% dos sujeitos entrevistados referiu ter sofrido moléstias sexuais (físicas e verbais) nos centros onde praticava um desporto.
[8]Segundo os dados 2017 da Iwf (Internet Watch Foundation), de 7 em 7 minutos uma página da web envia imagens de crianças abusadas sexualmente. Em 2017, foram identificados 78.589 URL contendo imagens de abuso sexual, concentrados de forma particular na Holanda, seguida por Estados Unidos, Canadá, França e Rússia. 55% das vítimas têm menos de 10 anos; 86% com meninas, 7% com meninos, 5% com ambos.
[9]Os destinos mais frequentados são Brasil, República Dominicana, Colômbia, bem como Tailândia e Camboja. Ultimamente, a estes têm-se somado alguns países da África e da Europa de Leste. Entretanto os primeiros seis países de proveniência das pessoas que cometem os abusos são França, Alemanha, Inglaterra, China, Japão e Itália. Não transcurável é também o número crescente de mulheres que viajam até países em vias de desenvolvimento à procura de sexo pago com menores: no total, elas representam 10% dos turistas sexuais no mundo. Além disso, segundo um estudo realizado pela Ecpat International (Fim da Prostituição Infantil no Turismo Asiático), comparando 2015 e 2016, 35% dos turistas sexuais pedófilos eram clientes regulares, enquanto 65% eram clientes ocasionais (cf. https://www.osservatoriodiritti.it/2018/03/27/turismo-sessuale-minorile-nel-mondo-italia-ecpat).
[10]«Com efeito, se esta calamidade gravíssima chegou a enredar alguns ministros consagrados, perguntamo-nos quão profunda poderá ser ela nas nossas sociedades e nas nossas famílias?» (Francisco, Discurso à Cúria Romana, 21/XII/2018).
[11]Cf. R. H. Benson, The Lord of the World, Dodd, Mead and Company, Londres, 1907.
[12]«Que temes, Herodes, ao ouvir dizer que nasceu o Rei? Ele não veio para te destronar, mas para vencer o demónio. Tu, porém, não o compreendes; e por isso te perturbas e te enfureces, e, para que não escape aquele único Menino que buscas, te convertes em cruel assassino de tantas crianças. (…) Matas o corpo das crianças, porque o temor te matou o coração»: São Quodvultdeus, Sermão 2 sobre o Símbolo: PL 40, 655).
[13]«Assim como o dragão infernal, tendo inoculado o seu veneno na árvore da ciência, havia corrompido a natureza do homem que saboreara o seu fruto, também agora, tentando devorar a carne do Senhor, ficou arruinado e destruído pela virtude da divindade que nela habitava»: São Máximo Confessor, Centuria 1, 8-13: PG 90, 1182-1186.
[14]São elas o Cdc: Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos; Crc: Convenção sobre os Direitos da Criança; Acabar com a violência contra as crianças: a parceria global; Opas: Organização Pan-Americana da Saúde; Pepfar: Programa de Emergência do Presidente para o Alívio da AIDS; Tfg: Together for Girls; Unicef: Fundo das Nações Unidas para a Infância; Unodc: Departamento das Nações Unidas sobre Drogas e Crime; Usaid: Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional; Oms: Organização Mundial da Saúde.
[15]Cada letra da palavra INSPIRE representa uma das estratégias, tendo a maior parte delas demonstrado efeitos preventivos sobre vários tipos de violência, e também benefícios em áreas como a saúde mental, a educação e a redução da criminalidade. As sete estratégias são as seguintes. Implementation and enforcement of laws: implementação e aplicação das leis (por exemplo, proibir disciplinas violentas e limitar o acesso a álcool e armas de fogo); Norms and values: normas e valores a mudar (por exemplo, aqueles que perdoam o abuso sexual sobre meninas ou o comportamento agressivo entre os rapazes); Safe environments: ambientes seguros (por exemplo, identificar nos bairros os «pontos quentes» para a violência e enfrentar as causas locais através duma política que resolva problemas e outras intervenções); Parent and caregiver support: pais e apoio do assistente da família (por exemplo, fornecendo formação aos pais sobre os jovens, aos recém-progenitores); Income and economic strengthening: rendimento e reforço económico (como o microcrédito e a formação sobre a equidade de género); Response and support services: serviços de resposta e apoio (por exemplo, garantir que as crianças expostas à violência possam ter acesso a cuidados de emergência eficazes e receber apoio psicossocial adequado); Education and life skills: instrução e qualificação para a vida (por exemplo, assegurar que as crianças frequentem a escola e dotá-las das suas competências sociais).
[16]Cf. Documento Final do VI Congresso Mundial sobra a Pastoral do Turismo, 27/VII/2004.
[17]Vida escondida y epifanía: Obras Completas, V, Burgos, 2007, 637.
Fonte: https://goo.gl/ezN8rT