No mês passado, o Senado aprovou e a Presidência da República sancionou uma reforma no ensino médio que amplia a carga horária dos alunos e permite que eles próprios escolham uma parte das disciplinas que vão cursar.
Não é a primeira vez que o ensino médio é reformulado. Há 46 anos, o país viveu um processo semelhante. Em 1971, o governo militar instituiu a Reforma do Ensino de 1º e 2º Graus, depois de tramitação sumária no Congresso. A Lei 5.692 mudou a organização do ensino no Brasil.
Numa alteração radical, o 2º grau passou a ter como principal objetivo a profissionalização. Em curto e médio prazos, todas as escolas públicas e privadas desse nível deveriam tornar-se profissionalizantes. Elas teriam que escolher os cursos que ofereceriam, dentre mais de 100 habilitações, que incluíam formações variadas como auxiliar de escritório ou de enfermagem e técnico em edificações, contabilidade ou agropecuária. O aluno receberia ao fim do 2º grau um certificado de habilitação profissional. Os governos estaduais teriam que implementar as medidas.
A formação geral, antes oferecida por meio do secundário (que podia ser clássico ou científico), perderia espaço.
Milagre brasileiro
A necessidade de mão de obra foi o argumento do governo de Emílio Médici ao conceber a reforma do ensino. O Brasil vivia o milagre econômico, com industrialização acelerada e expectativa de crescimento. O país precisava de trabalhadores, sustentava o presidente.
Em 1970, o governo nomeou nove especialistas para elaborar a reforma. O anteprojeto ficou pronto em dois meses. Em junho de 1971, chegou ao Congresso.
A reforma proposta implicava “abandonar o ensino verbalístico e academizante para partir, vigorosamente, para um sistema educativo de 1º e 2º grau voltado às necessidades do desenvolvimento”, dizia a mensagem do ministro da Educação, Jarbas Passarinho, enviada com o projeto que daria origem à Lei 5.692.
O ministro — senador licenciado — também afirmava que a reforma possibilitaria o abandono do ensino “meramente propedêutico” (preparatório para o ensino superior) para dar terminalidade à escola de 2º grau, formando “os técnicos de nível médio de que têm fome a empresa privada e a pública”.
A terminalidade a que se referia o ministro significava que o aluno, ao se qualificar como técnico ou auxiliar, poderia dar por encerrados os estudos e entrar no mercado de trabalho.
Para o professor emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Luiz Antônio Cunha, a terminalidade era o principal objetivo do governo. Mais do que atender supostas necessidades do mercado, o que o regime militar queria era reduzir a demanda por vagas no ensino superior, sustenta Cunha, autor de obras sobre ensino técnico-profissional. Na época, conta ele, o governo era pressionado pelos chamados excedentes — estudantes que eram aprovados no vestibular, mas não conseguiam entrar na universidade (explica-se: o vestibular não era classificatório; todos que obtivessem uma determinada nota poderiam, em tese, ingressar na faculdade).
— Os governos que sucederam o golpe de 1964 tinham como tônica a redução dos gastos governamentais com ensino. Para isso era necessário reduzir a demanda de ensino superior, que crescia de forma intensa. O instrumento foi a profissionalização universal e compulsória de todo o 2º grau. A necessidade de mão de obra não foi a motivação, isso era ilusório — sustenta.
Tramitação rápida
A aprovação no Congresso foi rápida, sem espaço para debate nem dentro nem fora do Parlamento. O país vivia o período mais duro do regime, e o Legislativo, que havia sido fechado pelo AI-5 em 1968 e reaberto apenas no ano seguinte, estava ceifado por cassações de mandatos.
O Projeto de Lei 9/1971 chegou ao Congresso em regime de urgência. Em 40 dias, foi analisado por uma comissão mista (que tinha 18 parlamentares da Arena, o partido do governo, e apenas 4 do MDB, o partido da oposição) e encaminhado para votação em sessão conjunta do Senado e da Câmara. A discussão e a votação no Plenário do Congresso Nacional ocorreram em um único dia, em julho de 1971.
Os poucos deputados e senadores que se manifestaram em Plenário apoiaram a proposta, mostram documentos guardados no Arquivo do Senado.
— Tornam-se inadiáveis medidas concretas para acelerar o preparo do povo brasileiro. O país precisa de mão de obra de melhor qualidade e maior quantidade, no menor tempo possível — disse o deputado Flexa Ribeiro (Arena-RJ), primo do atual senador de mesmo nome.
O relator do projeto foi o deputado Aderbal Jurema (Arena-PE), que havia integrado o grupo de especialistas responsável pela elaboração da reforma, em 1970. Aos colegas, o relator ressaltou que a proposta daria ao ensino médio “uma finalidade própria”:
— Não podíamos continuar de braços cruzados diante de um ensino que não preparava o aluno para se tornar um instrumento válido, frente à carência de recursos humanos.
O deputado Cantídio Sampaio (Arena-SP) frisou que os estudantes que terminavam o curso secundário (o curso científico ou o clássico, ambos de formação geral) “estavam praticamente inabilitados para a vida, porque não tinham uma profissão”.
Nem mesmo a oposição ousou confrontar a reforma. O deputado Laerte Vieira (MDB-SC) apenas ponderou que a implementação do profissionalizante não seria fácil. Ele disse que o relator sabia que não havia corpo docente para transformar o país “de uma hora para outra”, ministrando ensino técnico. “Com que estrutura?”, questionou:
— Reconhecemos, nós da oposição, que as intenções do governo são válidas. Mas não queira Vossa Excelência convencer a todos nós e aos brasileiros que com este projeto estão dando, de imediato, habilitação profissional àqueles que concluem o curso — pontuou o deputado, pedindo desculpas pela intervenção e frisando que, apesar das ressalvas, o texto teria “aprovação pacífica”.
Emendas
Na tramitação do projeto no Congresso, mais de 300 emendas foram apresentadas. A maioria, porém, era inócua, avalia o educador Dermeval Saviani, especialista em história da educação. Nenhuma contestava os princípios da reforma; muitas, ao contrário, buscavam deixar ainda mais explícitos os objetivos do governo, diz Saviani, que estudou a atuação do Parlamento nas reformas educacionais.
Um exemplo é a emenda que reforçou a obrigatoriedade da profissionalização no 2º grau. O texto enviado ao Congresso determinava que a parte de formação especial, que deveria ser predominante no currículo do 2º grau, seria destinada à habilitação profissional ou “ao aprofundamento em determinadas ordens de estudos gerais”. Vários parlamentares apresentaram emendas para excluir essa abertura à formação geral. Uma delas, do deputado Bezerra de Mello (Arena-SP), foi aceita. O projeto passou a determinar que o objetivo da formação no 2º grau seria unicamente a habilitação profissional. Só excepcionalmente o currículo poderia voltar-se ao “aprofundamento em determinada ordem de estudos gerais”.
O deputado justificou: “É necessário fechar de uma vez por todas a porta das escolas ao ensino verbalístico e academizante, que não forma nem para o trabalho nem para a vida. A alternativa ‘ou aprofundamento de estudos gerais’ seria a grande brecha por onde resvalariam as escolas e os sistemas avessos à formação profissional do jovem”.
Em 1982, de volta ao Congresso como senador, Passarinho tentou minimizar a responsabilidade do governo militar pela fracassada reforma do ensino médio e jogou a culpa sobre o Parlamento. Ele disse em Plenário que a profissionalização obrigatória no 2º grau havia surgido por imposição dos parlamentares, e não do governo. Passarinho lembrou que foi uma emenda apresentada por um deputado que alterou o texto original nesse sentido.
Saviani, no entanto, contesta a tentativa do ministro de atribuir a mudança ao Congresso.
— O espírito [do projeto do governo] era esse mesmo, de profissionalização obrigatória, compulsória. Quando o relator acolheu a emenda, foi porque entendeu que ela correspondia ao espírito do projeto original. Dizer que a responsabilidade foi do Parlamento é desconversar, porque o Parlamento estava subordinado ao governo.
Outro argumento utilizado pelo governo militar para defender o novo ensino médio era a necessidade de romper com o conceito de que o ensino técnico era para os filhos dos pobres e que a universidade era para os filhos dos ricos. O que ocorreu foi que os estudantes com melhor nível financeiro encontraram escolas particulares que burlaram a exigência do ensino técnico e continuaram se dedicando à formação geral, que preparava para o vestibular.
Problemas
Os jornais comemoraram a sanção da Lei 5.692, em agosto de 1971. O ensino médio “objetivo e profissional” marcaria “o despertar de um Brasil novo”, diziam alguns editoriais. Um ano depois, porém, já apareciam críticas à reforma, mostrando as dificuldades das escolas e dos governos na implantação do ensino profissionalizante.
Em novembro de 1972, o Jornal do Brasil deu voz a secretários estaduais de Educação que se queixavam da falta de recursos. “As despesas exigidas pelas mudanças tornaram a situação mais difícil e mesmo as injeções de verbas feitas pelo MEC não são suficientes para amenizar o deficit”, dizia a reportagem, citando a falta de professores e lembrando que muitas escolas tinham instalações precárias e estavam mal equipadas. “Poucas terão condições de proporcionar o ensino profissionalizante sem fazer gastos acima de suas possibilidades”, previa o jornal.
Nos anos seguintes, a imprensa continuaria refletindo os percalços da reforma. “Ensino técnico é de difícil implantação e caríssimo”, reclamou o secretário de Educação de São Paulo, José Bonifácio Nogueira, ao Estado de S. Paulo em 1975.
A implantação de mudança tão ampla era mesmo complexa, explica o consultor legislativo do Senado José Edmar de Queiroz.
— A legislação mudou sem que os sistemas de ensino, a rede física e os recursos humanos estivessem preparados para atender a nova regra. Uma escola ensina curso clássico e científico e de repente tem que ensinar profissionalizante? Isso não é simples. As escolas não se adaptaram.
O consultor conta casos como o de um colégio onde os alunos do curso de datilografia, por falta de máquinas de escrever, treinavam em uma cartela com teclas desenhadas. Relatos semelhantes apareciam nos jornais da época. Uma professora admitiu em 1977 que sua escola não tinha nem mesmo tubos de ensaio, mas oferecia curso de laboratorista em análises clínicas.
Queiroz, que acaba de concluir um estudo sobre a reforma de 1971, aponta outro problema: ninguém queria o profissionalizante. Tanto os estudantes quanto suas famílias sonhavam com a universidade. Porém, a preparação para o vestibular se tornara falha, principalmente nas escolas públicas.
A necessidade de profissionais para o mercado de trabalho também se mostrou enganosa.
— A suposição de uma demanda de técnicos que justificaria uma reforma dessa amplitude não tinha base na realidade e não se demonstrou efetivamente — afirma Dermeval Saviani.
Os próprios empresários tendiam a preferir que a escola garantisse a formação geral, explica o professor. Mas erro maior, avalia, foi a concepção da reforma sobre o papel da escola:
— Dizia-se que a escola estava defasada e deveria se articular para atender as demandas do mercado de trabalho. Acontece que escola não é agência de treinamento profissional para empresas. Escola é instituição de formação dos seres humanos, de acesso à cultura letrada.
Desorganização
Ao falar à imprensa no fim de 1971, fazendo um balanço do ano, Jarbas Passarinho vaticinou:
— A reforma do ensino marcará profundamente a educação brasileira. Ela é de tal profundidade que, como um enorme êxito ou como um enorme fracasso, não deixará de marcar.
Para o professor Luiz Antônio Cunha, não há dúvida.
— Foi um enorme fracasso, porque disso não resultou absolutamente nada, a não ser desorganização escolar no ensino médio, cujos resultados negativos estão presentes até hoje. Se de repente todo o ensino de 2º grau é obrigado a se enquadrar em determinada forma compulsoriamente, algumas escolas até conseguem, outras menos, mas a falsificação vira tônica. O que tivemos de ensino falsamente profissional é algo de arrepiar.
Uma das integrantes do grupo de trabalho que elaborou a reforma em 1970, a professora emérita da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Magda Soares explica que a proposta dos especialistas era a de que uma base de estudos gerais prepararia os jovens que o desejassem para o ensino superior, ao mesmo tempo em que uma habilitação de nível médio já lhes possibilitaria uma ocupação, o que beneficiaria sobretudo os mais pobres. Mas isso “foi um sonho que não se realizou”, diz:
— Educadores que éramos, não nos demos conta de que a realidade se impõe ao desejável. A profissionalização requeria das redes públicas e das escolas uma reformulação que exigia mudanças pedagógicas, de infraestrutura, de qualificação de professores… Mudanças radicais e mesmo quase impossíveis, por questões de financiamento, de contratação de novos professores, construção de laboratórios e oficinas. Não foi viável — diz ela.
O professor Remi Castioni, da Universidade de Brasília (UnB), diz que a falta de preparação das redes de ensino para a efetivação das mudanças não foi exclusiva da reforma de 1971:
— Tivemos várias tentativas de mudar o ensino médio, mas todas tiveram a mesma dificuldade: a falta de preparo das pessoas que colocariam essas políticas em prática. A implementação é o fator definidor do sucesso de qualquer política educacional.
A reforma educacional de 1971 também mexeu na organização das escolas. Até então, a educação básica era dividida em primário (com quatro anos de duração) e ensino médio (composto por ginásio e colegial, com oito ou nove anos). Foi com a reforma que se criaram o 1º e o 2º grau. O 1º grau uniu o primário e o ginásio, somando oito anos. O 2º grau ficou com três anos.
Em relação ao 1º grau, porém, a reforma de 1971 foi positiva. De acordo com especialistas, ela trouxe avanços, como a expansão do ensino obrigatório de quatro para oito anos e o fim do exame de admissão que o concluinte do primário precisava fazer para continuar os estudos — e que barrava muitos alunos.
Flexibilização
Em meio às críticas à profissionalização compulsória, a ditadura permitiu flexibilizações na Lei 5.692 ao longo dos anos. Por fim, em 1982, o Congresso recebeu do governo militar o projeto que extinguiria a exigência de habilitação profissional.
O relator da proposta, deputado Rômulo Galvão (PDS-BA), explicou em Plenário por que era preciso acabar com o profissionalizante obrigatório. Disse que, nos dez anos de vigência da lei, se detectaram “inarredáveis dificuldades” em sua implantação.
Além da falta de professores especializados, equipamentos e instalações, Galvão citava outros fatores que motivavam a mudança da norma. A formação dos jovens ficou comprometida com o empobrecimento da cultura geral; a preparação para os cursos superiores passou a depender cada vez mais dos cursinhos; não se estabeleceu a correlação entre os técnicos formados e as necessidades do mercado; a profissionalização efetiva não ocorreu, tendo sucesso apenas nos sistemas de treinamento (como as escolas do Senai e do Senac); e os próprios educadores começaram a indagar se seria pedagogicamente aceitável impor ao jovem uma tomada de decisão precoce sobre seu futuro profissional.
— Nessa fase, visa-se à formação integral do adolescente, centrada basicamente na educação geral, à qual se deve associar uma adequada visão do mundo do trabalho, mas sem chegar necessariamente à profissionalização definitiva — argumentou o relator.
O projeto foi aprovado. Em outubro de 1982, o último presidente do regime militar, João Baptista Figueiredo, sancionou a Lei 7.044, que extinguiu o caráter obrigatório da profissionalização. A “qualificação para o trabalho” determinada pela reforma foi substituída pela expressão “preparação para o trabalho”, retirando a exigência de habilitação profissional, que passaria a ser opcional para as escolas. A ideia do ensino profissionalizante obrigatório acabaria sepultada pela própria ditadura que a concebeu.
Escola oferecia aulas de marcenaria e datilografia
Em 1972, o Jornal do Brasil acompanhou o início das aulas em uma das escolas públicas do Rio eleitas pelo governo como pilotos na implantação da reforma do ensino. “Ensinar para a vida é um dos lemas do Gonzaga da Gama, por isso o forte do colégio são as oficinas”, dizia reportagem, informando que os alunos aprendiam a datilografar e a fazer um “bem torneado pé de mesa”.
A escola era conhecida pela qualidade do corpo docente e também de suas oficinas.
— O colégio despertou minha curiosidade para a área profissional. Tínhamos ótimos professores, didática pioneira, oficinas bem montadas — conta Hélio de Mattos Alves, aluno da escola de 1970 a 1973.
Hélio praticou marcenaria, metalurgia e artesanato em couro. Filho de operário, aos 15 anos começou a trabalhar em uma fábrica de luvas, usando o que aprendera na escola.
A qualidade, porém, não era regra na rede pública. Depois do Gonzaga da Gama, Hélio estudou em outra escola, onde os alunos se formavam técnicos em química.
— O curso era péssimo. Nem laboratório havia — lembra.
A formação geral também era falha. Por isso, o jovem, que queria fazer universidade, foi para um colégio particular, que preparava para o vestibular. Formou-se em farmácia e hoje é professor na UFRJ.
Fonte: Agência Senado